De volta ao Paraíso

Naquela altura onde a alma em vez de duas era uma, existia uma personagem. Uma personagem tão típica. Mas típica de si mesmo, que raramente deixava fugir a justiça e/ou a razão. Ele não tinha cor nem raça, não tinha morada, nem pátria. Sabia que era um homem capaz. Contudo, não era incapaz de permanecer no mesmo sítio, como que estivesse num estado sólido, e não existissem reacções químicas. Ele era tanto e tão pouco, que por onde passava deixava as pegadas cravadas na pedra, mas mesmo assim ninguém sabia quem ele era.
E era assim que ele permanecia na Terra. Ele gostava de permanecer, gostava de conhecer. E acima de tudo, gostava de ser. Ai, como ele gostava de ser. Ser aquele que não era ninguém, contudo tinha alguém. Tenho que corrigir-me, o que ele gostava mesmo era de ter alguém, ele não sabia não ter aquele alguém.
Sabe-se que esse personagem percorreu montes, e vales, praias e cascatas, na busca de ar, cada vez mais puro. De todas as viagens realizadas lá tocava mais uma alma e formava duas inseparáveis. O seu toque era tão particular que nunca revelara o seu nome. Nem ele se lembrava mais qual seria esse nome que lhe foi dado à nascença, ele que não sabia a sua origem sequer. Não era um triste, nem um pobre de espírito, era tão rico quantos os nobres, e tão feliz quanto os tolos. Vivia, e permanecia. Que a sede de permanecer ultrapassava a de viver.

Não faltavam dias nem faltavam noites em que não se recordava daquele alguém, um alguém que ainda não conhecera. Mais luas passaram, mais do que sóis e recordou-se. A recordação tão pouco fazia parte de si, nem dos outros acerca dele.
Ele sentia que tinha perdido a alma em algum lugar, não longe dali, ou talvez tão distante. Não havia poiso em si. Mas tudo tinha lugar. Percorreu mais um pouco a sua jornada, porque a sua riqueza de carácter não o fazia regressar. Ele sabia, que de todas as voltas que desse essa sua alma estaria percorrendo também em direcção reta. Nunca na retaguarda.

Ao longe avistou uma cidade, uma construção bela para a mão humana, plantada no meio do nada, mas que era tudo. Tudo o que a Mãe Natureza poderia lhe dar. Todo o verde, todo o azul, todo o fogo brilhante, lhe reluzia e lhe cheirava a conhecido. Mas ali não era natal. Ali, ali era viver.
Caminhou mais um pouco, cansado, que agora que a ansiedade do conhecido apertava, as características comuns apareciam. Mas não estava fraco.
Entrando assim, ofegante. Olhares o reconheciam. Não de um passado, mas sim de uma espera. Era um presente. Um regalo à vista.
As pessoas, que ali existiam, murmuravam risos nervosos.
Ele despojado de ornamentações, sentia-se flutuar naquele chão. O pó era de onde ele vinha. Onde ele finalmente ia encontrar.
Agora, que sabia reconhecer, um monge aproximara-se dele. Não lhe falou. Apenas lhe acenou para segui-lo. E foi o que fez. Aos poucos tudo aviva mais, as cores eram outras, e ele passava a ver casas e caras, vidas e gentes. Ele via um propósito. Ele via um caminho.
O monge parou e cortou na sua direita.
Ele não sabia o que era, mas sabia onde estava. Soube pertencer a um lugar.
Um jardim, com água salgada do mar, com todo o o universo em flor ali. Onde pássaros e borboletas voavam sem parar. Os seus olhos arregalados, quebravam barreiras de memória.
No meio do Paraíso, de costas voltadas para ele, estava a sua alma. Nua e límpida. Pura e como que perfeita. Aquele ser que o tornava humano. Já não era mais típico, mas era incomum. Era incomum vê-la ali como o seu espelho num reverso. A sua metade polida e expectante por si. Porque ela sabia que ele viria sempre. Sempre que se esquecia de casa, e do seu leito. Mesmo que séculos depois. Aquela ímpar imortalidade, nunca se perdia no tempo. Porque um espelho mesmo que partido ou gasto nunca deixa de refletir a mesma imagem.
A mais bela unidade alguma vez criada.

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